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Foto do escritorJoana Miguel Meneses

Toda a gente canta, nem que seja no chuveiro

Marisa Oliveira começou a cantar na Academia de Música Valentim Moreira de Sá, atual Conservatório de Guimarães, onde agora dá aulas. Os seus dias nunca são iguais, cheios de projetos, ideias, coros, músicas e (en)cantos. São dias até um “bocadinho frenéticos”, mas o gosto por ensinar e atuar andam sempre de braço dado.


© Cláudia Crespo

No outro dia, quando me atendeste o telemóvel, perguntei se estavas a dormir, por causa da voz. Respondeste que ainda não tinhas falado com ninguém. Estamos quase a celebrar o dia da voz, a 16 de abril. Perguntava-te precisamente que cuidados é que devemos ter com a voz.

Olha, não falar muito alto, não beber bebidas alcoólicas, ou bebidas muito frias. Temos que ter algum cuidado com a forma como falamos, no meu caso, como canto também. E, sim, acordar mais cedo quando temos que cantar a seguir ou falar com alguém, porque senão a voz não vai funcionar – ou o corpo também não vai funcionar, porque a voz é muito o corpo, é muito a utilização do corpo e não só das nossas cordas vocais -.


Trabalhas diariamente com a voz, mas a verdade é que é um instrumento que todos nós usamos. Há alguma maneira ou como é que é possível descobrir um bom cantor?

Cantando, experimentando. Eu costumo dizer que toda a gente canta. Nem que seja no chuveiro, toda a gente canta. E não tem que haver tabu se cantamos bem ou se cantamos mal, cada um tem a sua própria voz, e saberá utilizá-la da melhor forma. Mas sim, todos nós utilizamos a nossa voz e todos nós devíamos saber como utilizar a voz de forma saudável, especialmente pessoas que trabalhem com ela diariamente, que sejam comunicadoras, que sejam professores… Costumo dizer que os professores deviam todos ter um coro na escola e todos ter técnica vocal até muito tarde para evitar problemas.


Há alguma coisa que possamos fazer, por exemplo, todos os dias, quando acordamos?

Fazer alguns aquecimentos naturais, aquecer o corpo, espreguiçar-nos, aprender a utilizar a respiração diafragmática. Porque é importante mesmo que não seja para cantar, perceber que quando esforçamos alguma coisa não está bem ou quando estamos constantemente roucos, porque temos uma exposição e de repente falamos demasiado e ficamos roucos, qualquer coisa não está bem.


No caso da rouquidão, muitas vezes até pode ser ansiedade ou nervosismo…

Pode. A perda de voz pode estar associada à ansiedade, nervosismo, porque os nossos músculos bloqueiam e a nossa voz pode bloquear também.


Falando um bocadinho de ti… Começaste na Academia de Música Valentim Moreira de Sá, atual Conservatório de Guimarães. Dares aulas agora no Conservatório é especial?

É, claro. É voltar às raízes. Fui aluna desde os seis até ao 12.º. Apesar de não ter feito o ensino articulado e não ter feito o ensino especializado no meu secundário – estive em ciências -, a decisão de ir para música acabou por acontecer. Quando regressei dos estudos, estive fora, foi muito especial voltar às raízes, sim.


Tinhas seis anos quando entraste. Por que razão entraste?

A minha mãe [risos]. Alguém lhe disse que era muito bom para os filhos irem para a música e a minha mãe disse “então vamos pô-los na música”. Começaram os meus irmãos e eu sou a mais nova, entrei depois.


Foi aí que descobriste o bichinho?

Sim, mas eu acho que sempre fui um bocado artista desde pequenina. Descobrimos lá um vídeo, com dois anos…


Fazias as festas de Natal em casa?

Sim, era a menina da família [risos].


Estudaste na Escola Superior de Música de Lisboa e na Hungria, no Kodály Institute of Liszt Ferenc Zeneművészeti Egyetem. Porquê esse caminho?

Na altura, queria a área da formação musical, porque era a área com a qual me sentia mais confortável, e a área do coro porque eram disciplinas que eu me sentia peixinho dentro de água. Cantar, para mim, era especial, era onde eu me sentia mesmo na minha praia. Decidi fazer o concurso a três escolas: Aveiro, Castelo Branco e Lisboa, apesar de o percurso natural dizer-me para ir para Lisboa. Tive a sorte de conseguir entrar, de ser uma das selecionadas para frequentar o curso e depois, lá, tudo se desenrolou. Estando na capital também temos outras propostas. A escola tinha um bom relacionamento com Hungria, conseguimos ir de Erasmus, depois consegui uma bolsa para voltar lá quando concluí os meus estudos para trabalhar canto. Foi muito especial, mas o percurso foi todo muito natural. Claro, com muito trabalho, mas sempre muito orgânico a partir do momento em que entrei na Universidade de Lisboa.


É muito diferente o ensino na Hungria e o ensino em Portugal?

Muito. Usam sistemas diferentes. No caso específico do que eu fui estudar, era uma pedagogia ativa de ensino desde a creche até ao 12.º. Eles usam um sistema diferente de ensino, uma abordagem diferente, também. Há ferramentas que são muito mais orgânicas que nós pudemos catapultar para aqui, mas cada vez mais se vê pessoas aqui a trabalhar com aquele método e foi uma forma de complementar aquilo que que aprendemos.


Presumo, porque é uma área muito prática, que tiveste de fazer provas para entrar na universidade. Quais são?

Especificamente na Escola Superior temos as provas específicas. Todas as escolas ou todos os cursos da área da música em escolas superiores de música têm provas de acesso, provas específicas para determinada área, provas de relacionadas com a área. Se for um clarinetista vai ter a prova de clarinete, depois tem umas provas teóricas. No meu caso, tínhamos as provas de formação musical, que consistiam numa prova escrita, numa prova oral, ou seja, uma prova de leitura, entoação de uma canção, tínhamos praticoteclado, tivemos que dirigir um coro, também… Tínhamos uma série de provas que dava uma seleção e essa era a que dava mais valor, porque era a prova específica do curso. Depois tivemos as provas teóricas, que eram História.


Na Hungria, foi uma vertente mais educacional, digamos assim. Já sabias que gostavas dessa parte da educação ou acabaste por descobrir?

Eu acho que se vai descobrindo, mas eu sempre gostei da área… Lá está, é tudo muito orgânico. Eu acho que quando nós não nos sentimos bem numa determinada função, não dá. Nesta área, não dá, porque lidamos com pessoas e se nós não estamos organicamente bem com elas, não vai resultar. Eu tive a experiência de trabalhar com lares, por exemplo, e achei que não tinha a competência suficiente para trabalhar com aquele público, porque é um público muito específico, muito delicado e tem que se ter formação específica para aquela área. Com os pequeninos, já tenho uma orgânica diferente, com os adolescentes tenho outra orgânica… Temos que nos adaptar às diferentes situações…


Além de professora no Conservatório, trabalhas com a Outra Voz, com o Coro En’Canto, fazes parte dos projetos Bjazz e TetrAcord’Ensemble. Faltam-me, certamente, algumas coisas aqui. Quem é a Marisa Oliveira?

A Marisa, atualmente, está assim virada para várias vertentes, mas tudo na área do trabalho com pessoas. Estou também no Círculo de Arte e Recreio, onde sou atualmente professora de canto e tenho agora um novo projeto lá, o ensemble vocal feminino. Estou no Conservatório, onde sou professora de coro e formação musical, e também desenvolvo outro tipo de projetos muito ligados à criação com os miúdos. Estou a coordenar, juntamente com outro colega, o projeto Cantânia – estou responsável pela gestão do primeiro ciclo no projeto relacionado com crianças com voz, com cantar, com envolvimento em espetáculos… Depois tenho os mais específicos que são a Outra Voz, em que sou ensaiadora, o coro En’Canto, que fui eu que criei de raiz com um estímulo do Conservatório e sou maestrina. E o TetrAcord’Ensemble, que é o projeto, como cantora, com mais nome ou com mais relevância na minha vida, sim.


E acreditas que a teoria é tão importante como a prática e que faz falta?

Eu acho que andam os dois de braço dado. Têm que andar as duas de braço dado. Acho que as bases são essenciais e sem uma coisa não há outra. A teoria é muito boa, mas se não houver a prática… Eu gosto muito de ser professora e adoro ser professora, mas eu sinto que sou melhor professora se tiver a minha a minha parte artística. Sinto que tenho que estar ativa como cantora, como professora, como maestrina, para poder incentivar os meus alunos. Eles têm que me ver em tempo real, em ação, para perceberem aquilo que estou a ensinar.


E com tanta coisa, como é que é o teu dia a dia? Nunca igual, presumo.

Não há rotina. É um bocadinho frenético. Quem está nesta área tem uma vida um bocadinho frenética. Às vezes, é um bocadinho extenuante, mas queremos sempre mais. Nós dizemos: “para o ano vai ser melhor”, mas não vai. Vai ser sempre uma construção.


E dessas coisas todas há alguma que gostas mais?

Foi o que eu disse, estão de braços dados. Não conseguiria fazer uma se não estivesse a fazer a outra, se calhar. Mas eu gosto muito do desenvolvimento de projetos. Gosto de dar aulas mas não no sentido de estar numa sala de aula e tem que se estar ali. Gosto de estar ali, mas a criar com eles, a desenvolver alguma coisa, a desenvolver um projeto, a pensar na disciplina como algo artístico e não como algo dentro da sala de aula. O ensino da música está a ter uma volta, está a crescer e, às vezes, perdemos essa vertente artística. E não podemos. Temos que alimentar.


E a criatividade é algo que também se treina?

Isso é uma questão muito particular – porque é o tema da minha tese, por acaso, do meu mestrado -. Acho que a criatividade é algo que se vai experienciando, e que se vai tirando o medo. Desconstruir a ideia de que existem barreiras e que nós temos que seguir aqueles padrões. Podem haver, podem não haver, no processo criativo, mas não há erro. Se não há certo nem errado, vamos experimentar. O que é certo para mim pode não ser para ti. E está tudo bem.


E estilos musicais? O jazz é a tua praia?

Gosto muito. E gosto muito do ligeiro também. Apesar de ter tido formação clássica, acho que me identifico mais e acho que vocalmente também me identifico mais no jazz, no ligeiro… Se bem que tenho um fascínio pelo clássico e continuo a cantar e continua a fazer, e não significa que deixe de lado. Mas acho que cada um tem o seu percurso, a sua orgânica.


Descreveram-te como alguém que “não consegue estar quieta, sempre com ideias e projetos”. De que projetos é que tens mais orgulho?

Costumo dizer que o meu bebé é o coro En’Canto. Fundou-se comigo, não é? Eram 12, no início, e não sabíamos muito bem o que é que ia acontecer e, passados seis anos, somos 40. Já tem uma significância diferente e tenho muito orgulho no projeto que desenvolvemos todos. E o TetrAcord’Ensemble, claro.


E que ideias é que estão aí a fervilhar na tua cabeça para o futuro?

Estou sempre a construir e, às vezes, sai-me, assim, uma ideia do nada. Mas há alguns projetos que estão a começar a aparecer, noutras variantes mais de planeamento e de pensar… Não sei até que ponto é que também não gosto dessa vertente. Estou a explorar outras vertentes que não sejam só a performance.


O que é que é mais importante num projeto para ter a garantia que te tem?

Eu normalmente não digo que não [risos]. Um exemplo disso foi a Outra Voz. Cheguei e o João Guimarães disse-me: “olha, tenho um projeto fixe para ti. A Outra Voz está a precisar de um ensaiador”. Eu não fazia ideia, não tinha qualquer background. Sabia que existia, mas eu tinha acabado de chegar a Guimarães, não tinha estado cá na capital, estava na Hungria… Tinha algumas referências, mas não sabia muito bem o que era. E foi das melhores experiências que eu tenho tido nos últimos anos. Aliás, o criar e a vontade de criar, veio muito da Outra Voz. Dei muito, mas eles também me deram muito.


Para terminar, perguntava-te que mensagem de encorajamento, se é que lhe podemos chamar assim, é que gostavas de deixar às pessoas que só cantam no banho.

Venham para o coro, claramente. Existem imensos coros em Guimarães. Se gostam de cantar, cada um tem a sua voz, não há estigma. Costumam chegar ao coro e dizer: “não canto”. Eu digo “ainda bem, é por isso que aqui estamos”. Se fôssemos todos profissionais, tínhamos de estar todos a receber bem. Venham cantar, percam o medo e venham cantar.

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