Em “Zoo Story”, a palavra dita é substituída pela palavra gestuada. A beleza do gesto ocupa o silêncio e dá-se um encontro raro entre públicos com diferentes necessidades e expectativas.
Integralmente interpretada em Língua Gestual Portuguesa, a peça conta com o desempenho da atriz Marta Sales e do ator Tony Weaver, dois intérpretes surdos. O Mais Guimarães esteve à conversa com o diretor, Marco Paiva, que apresentou o espetáculo que estará em cena no Centro Cultural Vila Flor esta sexta-feira, às 21h30, e sábado, às 16h00.
Antes de mais, o que é a Terra Amarela?
A Terra Amarela é uma estrutura de criação artística que nasceu em 2018, na continuidade de um trabalho que eu já vinha fazendo com artistas com e sem deficiência e surdos. Logo a partir de 2018, desde a primeira criação, que a Terra Amarela sempre trabalhou com artistas surdos. Portanto, a língua gestual portuguesa esteve sempre dentro do nosso trabalho. Mas depois da experiência que tivemos com o espetáculo chamado “Calígula morreu. Eu não.”, que uma coprodução que fizemos com o Teatro Nacional D. Maria II e o Centro Dramático Nacional de Madrid, no ano de 2021, e que era um espetáculo bilingue em português, espanhol, língua gestual portuguesa e língua gestual espanhola, sentimos necessidade de aprofundar o nosso trabalho em torno da língua gestual para perceber até que ponto é que a presença de uma língua que é visual e não é oral transforma a própria linguagem do teatro que está muito ligado à questão da palavra dita. Lançámos esse desafio ao Teatro Nacional D. Maria II, que tem sido um parceiro importantíssimo no nosso trabalho e que tem acompanhado não só do ponto de vista artístico, mas também na discussão de todas estas temáticas sobre o acesso cultural e a diversidade. Lançámos este desafio ainda ao Tiago Rodrigues, que era diretor artístico, na altura, Teatro Nacional D. Maria II, a fazer um espetáculo totalmente em língua gestual portuguesa legendado com audiodescrição.
Este é o primeiro espetáculo que é integralmente em língua gestual portuguesa?
Exatamente, o primeiro espetáculo na verdade que está no circuito profissional do teatro em Portugal totalmente em língua gestual portuguesa e interpretado por dois artistas surdos. E o Tiago aceitou de imediato o desafio e chegámos ao “Zoo Story”, ao texto de Edward Albee, porque é um texto que encerra, entre outras temáticas, a temática da comunicação. Conta-nos a história de duas pessoas que se encontram num parque, duas pessoas com histórias de vida muito distintas, e que, naquele encontro, tentam estabelecer linhas de convergência uma com outra. Esta temática da comunicação pareceu-nos muito interessante explorar também na relação do próprio teatro com o público e do próprio teatro com aquilo que é o carne da sua própria estrutura enquanto arte. Basicamente o “Zoo Story” é isto, é um desafio em torno da comunicação e dos diversos lugares que podemos encontrar de comunicação uns com os outros.
A peça que apresentam não é o texto exatamente transcrito, certo? Tem algumas adaptações…
O texto vai tendo algumas adaptações, sim. Na verdade nós transpomos um texto que é escrito para uma cultura ouvinte para a cultura surda que tem uma língua e uma gramática própria e uma cultura muito própria. Portanto, na verdade, o que acontece é que nós transpomos a história do Albee primeiro para a língua gestual portuguesa e para aquilo que encerra a própria língua gestual portuguesa e, depois, vamos juntando dentro do próprio texto um pouco também das histórias daqueles dois intérpretes, do Tony Weaver e da Marta Sales. Ao fim e ao cabo, enquanto contamos a história do Albee, também contamos, mais ou menos explicitamente, a história daqueles dois intérpretes e a relação que aqueles dois intérpretes têm com o quotidiano. O texto do Edward Albee é um ponto de partida mas, na verdade, vai-nos também contando a história desta comunidade em relação com um mundo que é maioritariamente ouvinte.
Relativamente aos intérpretes, a Marta e o Tony são os dois surdos. Como é que foi esse processo de seleção?
Nós temos conhecido muitas pessoas surdas e muitas comunidades surdas espalhadas de norte a sul, porque desde o início do projeto sempre trabalhamos com artistas surdos. O Tony, na verdade, fez connosco o primeiro espetáculo, “Aldebarã”, e a partir do Tony temos conhecido imensa gente. Mas no caso do “Zoo Story” começamos o processo no início de 2022 com um curso de formação dirigida a artistas surdos no Teatro Nacional D. Maria II, que aconteceu entre janeiro e junho de 2022. Trabalhamos com 16 artistas surdos que vieram de vários pontos do país e, por um lado, mapeamos estes artistas, ou seja, conhecemos novos artistas a partir deste curso de formação, colaboramos na sua qualificação e, depois, este curso tinha como objetivo fazer o casting e conseguir empregar no elenco do “Zoo Story” dois desses artistas.
E tem acontecido uma coisa curiosa relativamente à comunidade surda. Nós temos recebido muitas pessoas surdas em todas as cidades que visitamos. A comunidade surda está presente, tem vontade de ir ao teatro, mas precisa de ver espelhado também a sua língua e a sua cultura. Se até aqui não têm ido é porque a sua língua e a sua cultura não estão espelhados nos objetos artísticos que são propostos nas programações. Estas pessoas existem, têm uma cultura profundamente interessante, têm vontade de ter relações culturais, mas precisam que os espaços também espalhem a sua história.
O Centro Cultural Vila Flor faz agora parte da Rede de Teatros com Programação Acessível e alguns dos espectáculos têm acompanhamento com língua gestual portuguesa. Tens sentido que esta é uma realidade que está a crescer em Portugal?
Tenho, cada vez mais. Acho que é uma realidade que tem vindo a aumentar cada vez mais. A língua gestual portuguesa, enquanto serviço, e a audiodescrição, por exemplo, em algumas das sessões, está cada vez mais presente. Acho que agora temos que dar um passo em frente que é ter estes serviços com mais continuidade e poder tê-los em todas as apresentações, por exemplo, colocar também a língua gestual portuguesa e os artistas surdos em cena e no centro da criação artística. Temos que dar agora um passo à frente, mas temos avançado em termos de acessibilidade. Há muito por fazer, mas acho que estamos no bom caminho.
“Zoo Story” já foi apresentada noutras salas. Como é que tem sido a receção do público?
O público tem sido muito heterogéneo porque, de facto, o espetáculo tem vários lugares de relação. As pessoas podem optar por seguir as legendas ou podem optar por abandonar as legendas e seguir com a parte estética do espetáculo e a própria força visual que tem a língua gestual portuguesa. As duas sessões de Guimarães vão ter áudio descrição e narração. Ou seja, há vários lugares onde o público se pode relacionar com a obra e isso tem feito com que as pessoas que chegam para ver o espetáculo sejam muito diversas. Isso tem acontecido em todos os sítios por onde temos passado e é, de facto, enriquecedor perceber que quando geramos acessibilidade as pessoas estão presentes e estão presentes com a sua diversidade identitária também. Isso é muito bom.
E é também a prova de que toda a gente pode comunicar entre si…
Claro que sim! Eu acho que aquilo que às vezes dificulta a comunicação entre as pessoas é a falta de disponibilidade e de tempo que vamos tendo uns para os outros. Porque se nós considerarmos ou se nós disponibilizarmos tempo de qualidade para estar com o outro, nós vamos criar linhas de comunicação e de entendimento. Acho que temos que ter essa disponibilidade de estar com os outros e a partir do momento em que essa disponibilidade existe e esse tipo de qualidade existe, as relações estabelecem-se naturalmente.
Voltando ao “Zoo Story”, sem levantar assim muito o véu, o que é que o público pode esperar?
Acho que o público pode esperar 60 minutos de descoberta de muita coisa, de descoberta de uma língua nova, de uma nova relação, se calhar, com o próprio teatro enquanto linguagem, desmistificar esta ideia de que o teatro é o lugar da palavra dita. O teatro é o lugar da imprevisibilidade das sensações, também, e essas sensações podem chegar de lugares muito distintos – do estímulo sonoro, visual -. Aquilo que o “Zoo Story” propõe é, de facto, isso. É uma experiência de relação sensitiva com a cena e com o teatro enquanto arte.
Depois de saírem do espetáculo, levem com vocês todas as temáticas que o espetáculo contempla, esta ideia de criar um território e comunidades diversas, respeitem identidades, pensem o acesso, pensem a cultura como um espaço onde qualquer um deve ter o direito de existir.
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