O pequeno auditório do Centro Cultural Vila Flor vai receber, sexta-feira e sábado, dia 5 e 6 de maio, “C., Celeste e A Primeira Virtude”, de Beatriz Batarda. A acompanhar, há uma vídeo instalação com histórias narradas a partir de testemunhos de jovens artistas das áreas de Teatro, Artes Visuais e Dança, recolhidos no intervalo em que veem o rumo das suas vidas suspenso: depois da vida de estudante e antes de atingirem a visibilidade pública.
A “Primeira Virtude”, que aparece no título, é uma referência ao monólogo de Beatriz Batarda e que vem dar origem a este espetáculo. Porém, na verdade, confessou a própria ao Mais Guimarães, “sobreviveu pouco desse monólogo”. Conta que aquele “já era o início de uma construção de uma personagem ficcionada” baseada na sua vida e experiência enquanto atriz e professora de teatro, mas “precisava de mais vozes e de outros pontos de vista”.
“C., Celeste e A Primeira Virtude” apresenta uma história que acontece numa escola de artes. Relata uma turma que está no final do seu curso, no último ano, a ensaiar o espetáculo final. Esta podia ser uma experiência muito feliz, mas, na verdade, é uma experiência bastante aterroziante pois estão sob esta pressão e inquietação que será entrar na vida real e no mercado. Estão quase como que “num sítio de febre, numa pressa de se definirem e construírem uma identidade sólida”, explica Beatriz Batarda. Nesse sítio “muito particular”, os alunos ficam “um bocadinho mais acessos do que no início do seu percurso escolar e dá-se uma rutura que é mais ou menos cíclica e natural entre gerações, uma rutura com a mestra”.
Mas este “é só um pretexto para falar de outras coisas da nossa contemporaneidade”, confidenciou a atriz e encenadora. E esta rutura é “mais drástica e trágica porque a mestra representa também a escola, o sistema educativo, e, naturalmente, o poder”.
Na peça, os alunos representam virtudes e muitas personagens carregam traumas coletivos, “nomeadamente as vozes de algumas personagens que carregam o trauma do colonialismo, seja ele de ocupação de território ou até um certo colonialismo capitalista que será, por exemplo, a pressão que o poder centralizado em Lisboa exerce sobre as regiões do país”. E era destas vozes que Beatriz Batarda precisava para poder, “no seu conjunto, ouvir essa verdade mais abrangente porque há mais profundidade nessa verdade que carrega diferentes pontos de vista e diferentes vivências”.
Um espetáculo que se apresenta, também, como uma reflexão. Que quer, mais do que responder a perguntas, levantar questões. Ao Mais Guimarães, a também escritora desta peça evidencia que “um pensamento crítico sobre um assunto tão complexo como o sistema educativo é necessário”.
“Eu própria faço uma reflexão sobre a professora que fui e venho sendo, que continua em transformação. Sinto-me bastante empática e em contacto com as inquietações dos mais novos, trabalho com eles”, disse explicando que não sente aquele abismo entre os mais novos e os mais velhos. Acredita que os “conflitos geracionais são conflitos que acontecem mais com os pais”, porque “os mais novos não gostam de ser relembrados que são jovens e inexperientes e inocentes”. Referiu, até, um exemplo de “C., Celeste e A Primeira Virtude”: “a uma dada altura, há um aluno que confunde a palavra inocência com a palavra ingenuidade. A professora diz que se comove com a beleza da inocência do sonho deles e ele responde que não são ingénuos. Logo aí há um grande equívoco. A relação com as próprias palavras é muito diferente e a peça vive dos equívocos que aumentam e se vão multiplicando. Um colega intervem contra a professora a achar que está a proteger outro colega e, na verdade, está a abrir uma ferida com o amigo e outra colega”.
Beatriz Batarda assume, pela primeira vez, nesta peça, o papel de escritora, encenadora e atriz. E este foi o “desafio maior” porque, enquanto atriz, trabalha “de uma forma muito até à exaustão”. Aqui isso não foi possível. Começou pela encenação, porque “estava preocupada em pôr este texto em palco”. Apesar de o ter escrito, permitiu-se fazê-lo sem pensar na encenação, também como forma de se “desafiar criativamente enquanto encenadora”.
“Quando me atirei à parte da encenação, colocar em prática ou resolver eficazmente o espetáculo não era evidente”, recorda dizendo ainda que foi adiando a sua própria direção. “Terei aprendido o texto muito tarde, demasiado, porque depois foram surgindo outros problemas com os quais eu não contava e fui adiando o meu envolvimento enquanto atriz com o texto”, justifica. Crê que, por ter sido a autora do texto, quando o quis fazer, não gostou nada e ficou “muito mais crítica e quase que o corpo rejeitava a relação com aquelas palavras”.
Durante os anos em que a pesquisa para “C., Celeste e A Primeira Virtude” foi realizada, foram feitos cinco encontros com ex alunos, tendo reunido 43 jovens. Esse processo foi registado, em vídeo, com Rita Quelhas.
Chama-se “Corpos Celestes” e é uma vídeo-instalação em cinco atos, cinco ecrãs, cinco histórias narradas a partir de testemunhos de jovens artistas das áreas de Teatro, Artes Visuais e Dança. Cruzam-se ficção e realidade e, com um olhar contemporâneo, aproximamo-nos do importante debate sobre o conflito individual entre pressões exteriores e motivações íntimas. Estará também ela no Centro Cultural Vila Flor nos dias 5 e 6 de maio.
O convite para assistir fica feito. E cabe a cada um descobrir a peça. Até porque o próprio espetáculo “faz esse elogio à virtude que nós, humanos, temos da curiosidade, esta capacidade de imaginar e projetar para dentro da cabeça um infinito ainda maior que os nossos sentidos percecionam”.
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