Sara Barros Leitão é atriz e encenadora, mas está ainda pouco habituada a ser ambas. Recentemente, abraçou um novo desafio, de fazer a direção artística do Teatro Oficina para o ano de 2022.
Estamos no Espaço Oficina, o teu novo local de trabalho. Disseste que este espaço era o melhor que podiam dar a um artista. O que é que encontraste aqui que te fez dizer isso?
O Espaço Oficina é mesmo aquilo que qualquer artista da minha geração e que trabalha com a escala com que eu gosto de trabalhar deseja. O Espaço Oficina tem uma Black Box, que tem cerca de 50, 60 lugares, e que tem muitas potencialidades, ou seja, pode transformar-se naquilo que nós quisermos. Pode-se acrescentar bancada, pode-se tirar bancada, pode ser um espaço completamente aberto. Tal como o nome indica, uma Black Box é uma caixa negra, mais pequena. Isso significa que o tipo de espetáculos que se fazem aqui, ou que se podem fazer aqui, têm sempre uma condicionante, o ator vai sempre conseguir olhar nos olhos de cada espectador. Isso é muito importante para aquilo que é o trabalho que eu gosto de fazer e aquilo que me interessa, o conseguir saber o que é cada pessoa que está na sala e conseguir sentir a sua respiração. É nessa escala que eu gosto de trabalhar, não para grandes palcos nem para grandes plateias. Eu até acho que não tenho sequer as capacidades e ferramentas, enquanto encenadora, para conseguir trabalhar para palcos e teias que tenham grandes capacidades técnicas, porque eu não iria saber usar tudo aquilo. Isto tem tudo aquilo que eu quero e depois, paralelamente, é um espaço que é muito agradável, tem luz direta e, ao mesmo tempo, consegue ter uma escuridão total, o que é muito importante para o teatro. Funciona na cave do prédio, então este lado underground, este lado mesmo abaixo do solo e pouco institucional que o Espaço Oficina tem, em que nós temos a chave e abrimo-lo quando quisermos, é tudo aquilo que nós desejamos para poder trabalhar. Acho que aquilo que provoca um espaço como este é o espaço de grande liberdade e de grande criação artística em que podem fervilhar aqui, realmente, ideias, podemos ficar pela noite dentro a ensaiar se nós quisermos e isso acho que é a cena mais extraordinária.
“O Ano do Nosso Desconfinamento” dá o mote para este ciclo de atividades para o Teatro Oficina. Aquilo que planeias é reativar o Espaço Oficina e o Teatro Oficina enquanto companhia de teatro?
Exatamente. O Teatro Oficina, no meu ponto de vista, deve operar e funcionar sempre a partir do Espaço Oficina. Não só porque tem o mesmo nome, e então desde aí já há uma mitologia comum. E depois porque é uma companhia de teatro que tem uma casa e é muito importante nós termos casas, sobretudo para pessoas como eu, que não estão habituadas a tê-lo. Eu consigo muito bem perceber o privilégio que é ter poder ter um palco à minha espera sempre que eu quiser, poder ter um espaço de trabalho sempre que quiser. E, sobretudo, condições como estas em que tenho espaços de trabalho, espaços de ensaio, tem um espaço para construção de figurinos, construção de cenografia. Isto, à escala que eu realmente gosto. Acho que toda a companhia, o Teatro Oficina, deve operar a partir daquilo que é a sua sede, o seu núcleo, a sua trincheira, se quisermos, que é o Espaço Oficina, e daqui partir para o resto do mundo. Este espaço tem tanto potencial que há muita coisa que se pode fazer aqui.
O que é que planeias mais concretamente neste ciclo de atividades?
Desde logo, abrir a porta, deixar o ar entrar, deixar a vida entrar, o Sol, desconfinar as ideias, desconfinar o próprio espaço. Estivemos todos bastante fechados e isolados e, portanto, há uma reativação daquilo que é este espaço que é necessário, mas também do que são os próprios públicos do Teatro Oficina na habitação deste espaço.
Há coisas que são projetos de continuidade, nomeadamente as Oficinas do Teatro Oficina, nas quais já passaram centenas de jovens, crianças, adultos, que estiveram aqui, neste palco, as suas primeiras experiências em teatro. Muitos tornaram-se profissionais, outros amadores, outros foi só uma experiência de vida.
Depois temos outras coisas, nomeadamente a criação de uma anti-biblioteca. Chamamos-lhe anti-biblioteca de forma provocadora, porque as anti-bibliotecas são compostas por livros que nós nunca lemos nem vamos ver, mas que representam momentos muito especiais, porque representam tudo aquilo que nós ainda não sabemos. E, claro, é provocador porque as peças de teatro não foram escritas para ficarem fechadas nos livros, foram escritas para ser feitas e, portanto, a anti-biblioteca do Teatro Oficina é composta por livros de teatro que reclamam por ser abertos, por ser feitos, por sair daqui, ir até ao palco, para conseguir ganhar vida. Estamos a recolher uma série de livros que já tínhamos, através de uma parceria com a Biblioteca Raul Brandão estamos a catalogar esses livros e brevemente fica disponível. A ideia é que qualquer pessoa possa passar por aqui e consultar esses livros de teatro e saber que o Teatro Oficina tem essa biblioteca. Para ativar essa anti-biblioteca, temos também as anti-leituras. São momentos de leitura, às quartas-feiras, às 21h30, de 15 em 15 dias. O objetivo é fazer um círculo de leitura em que as pessoas leem em voz alta peças de teatro, discutem essas peças, bebem chá, vinho, descalçam-se e estão simplesmente juntas, em casa.
Depois temos outras coisas, nomeadamente a criação de um espetáculo que estreia em setembro e que vai estar em cena aqui no Espaço Oficina. A novidade é que vai estar em cena durante três semanas, que é uma coisa meio contra corrente aos dias de hoje, em que as coisas nunca ficam mais do que dois dias em cena. Vamos contrariar isso. Andamos num relógio diferente e achamos que é um espaço de resistência também estar três semanas em cena com o mesmo espetáculo.
Temos várias coisas, nomeadamente um assalto ao arquivo, em que vamos pedir aos públicos para assaltarem o arquivo connosco, completamente dentro da legalidade, atenção, para que possamos revisitar em conjunto, e de forma participativa, o que é que é esse arquivo, as fotografias que ele contém, os figurinos, os textos… Para que o público, que está habituado a ver o Teatro Oficina desde 94, nas suas mais diversas experiências, possa contribuir com arquivo pessoal que tenha, nomeadamente, antigos bilhetes de espetáculos, textos com anotações, cartas de amor, o que seja. Que possam doar esse arquivo ao arquivo do Teatro Oficina para que nós possamos catalogá-lo, tomar conta dele e transformar também este espaço num espaço de consulta desse arquivo para que investigadores e investigadoras, estudantes, profissionais possam passar por cá, possam consultar o arquivo do Teatro Oficina e perceber o que é que foi a sua história.
Queres que este seja um espaço para todos e não apenas para os artistas. Acreditas que a cidade de Guimarães é uma cidade que está aberta a isso?
Eu acho que tem que estar. Seria muito aborrecido se fosse só para os artistas. Ficaria muito aborrecido ter só artistas aqui a passar de um lado para o outro a beber café. Portanto, o meu desafio é que o café seja partilhado por todas as pessoas que queiram vir cá tomar um chá, comer um biscoito, conversar, porque os artistas dialogam com o mundo e o seu trabalho só existe porque existe público. O seu trabalho só existe porque existem coisas sobre as quais se deve falar e, portanto, se nós estivermos fechados num castelo, vai ser muito difícil conseguir perceber o que é que é esse mundo. É muito importante derrubar muralhas e não nos fecharmos em nós próprios, nos nossos pensamentos. Pelo contrário, desconfinarmos, abrir a porta, deixar o mundo todo entrar e podermos até ter discussões, aqui, de coisas que nós não concordamos. E está tudo certo.
Falaste da peça que já disseste que, à partida, se chamará “Há ir e voltar”, porque nada é certo aqui. O que é que já nos podes dizer dessa peça?
Nada é certo. Na vida e na arte. Que aborrecido seria se assim fosse.
Não sei quase nada sobre ela e é preciso assumir. Esse é o desafio e essa é a beleza do caminho, é nós conseguirmo-nos encantar com as coisas que vamos descobrindo. Se eu partisse para este projeto com tudo pensado e com certezas, acho que não estaria cá a fazer nada. Portanto, eu preciso de reservar esses espaços para poder resgatar uma coisa que nos fomos esquecendo desde crianças a ter, mas que é muito importante, que é a capacidade de nos voltarmos a espantar. Esta capacidade de treinar o espanto por tudo o que vemos é muito importante. O Espaço Oficina e o Teatro Oficina têm que ser esse lugar.
O espetáculo “Há ir e voltar” tem um nome provisório, porque as equipas precisam de ter um nome para as coisas. Eu, como não sei dar nomes às coisas, vou sempre roubá-los a outras pessoas que acho sempre que fazem um trabalho melhor do que eu. Neste caso, roubei isto claramente ao Alexandre O’Neill, quando ele escreve este slogan para o Instituo de Socorro a Náufragos, “há mar e mar, há ir e voltar”. Eu peguei da parte do “há ir e voltar” para poder pensar num espetáculo que vai ser construído, que ainda não existe. Vai ser construído com a equipa criativa, com as atrizes, mas que tem algumas premissas, nomeadamente a emigração. Porque, na verdade, acho que em Guimarães e até no Minho, em geral, não há ninguém que não tenha uma história de emigração próxima da família. Desde pessoas que migraram nos anos 60, nos anos 70, muitas pessoas que deram o salto para fugir à guerra na esperança de que um dia a guerra pudesse acabar e que pudessem voltar às suas casas. Não sabiam quanto tempo ia demorar até acabar a guerra, até se dar o 25 de abril. Outras que emigraram mais recentemente, em 2008, em plena crise, com a Troika a entrar e com o primeiro-ministro a convidar-nos a emigrar. As histórias de imigração são histórias que fazem muito parte daquilo que é a nossa memória enquanto pessoas que habitam Portugal e que habitam outros países, mas que sentem que as suas raízes estão cá. Quero pegar um bocadinho sobre isso e depois há um outro lado espetáculo que não sei como é que é ele entrará, nem de que forma é que funcionará, mas é uma imagem que me vem frequentemente. Tem a ver com a rota de algodão, porque o algodão está também muito ligado à guerra e àquilo que eram as nossas ex-colónias, e a esta memória que existe no Vale do Ave da indústria têxtil que vai buscar o algodão na sua matéria-prima às ex-colónias e o traz para aqui, nomeadamente para Guimarães, o transforma em forma de atoalhados, lenços, fardas para vestir os nossos filhos para irem à guerra e depois os volta a vender para as ex-colónias. Esta transformação que o próprio algodão enquanto matéria tem, de também ele vai e volta e também nós o transformamos, tal como as histórias, é uma coisa que me interessa e, são assim dois princípios para o espetáculo que não sei o que é que será. Mas sei que estreia a 22 de setembro e que está toda a gente convidava, porque nessa altura haverá espetáculo para apresentar.
Falar em Sara Barros Leitão é, inevitavelmente, falar em associativismo. O teatro, para ti, acaba por ser também uma forma de fazer associativismo? É uma arma?
Acho que é uma arma e acho que o mais poderoso dessa arma é que não tem de o ser. O teatro deve ser esse sítio de liberdade e devemos resgatá-lo nesse lugar de liberdade e de não lhe dar uma função. Por isso é que, talvez, a minha vida associativa é tão forte, porque acabo por não encontrar no teatro o cumprimento de tudo aquilo que eu acho que preciso para me cumprir enquanto cidadã. Eu vejo o teatro de forma profissional e acho que é fundamental existir teatro amador. Eu própria comecei no teatro amador e acho que são momentos completamente fundamentais na vida das pessoas e aí sim, está muito ligado ao que é o lado associativo no sentido de sairmos de casa para nos encontrarmos com outras pessoas num outro espaço e para partilharmos o nosso dia para fazermos uma outra coisa que não tem utilidade nenhuma, que não serve para produzir nada, não é do universo mercantilista nem utilitarista, é apenas para estarmos juntos e fazermos uma coisa que gostamos. Isso é muito importante, resgatar esses universos. Claro que, quando fazemos teatro profissional, não podemos dizer que a coisa é assim, porque nos encontramos para trabalhar. Há uma seriedade nesse trabalho. Também existe no teatro amador, mas que a nossa profissão. Portanto, encontrar outros espaços para ativar aquilo que é o meu corpo político é também importante para mim, nomeadamente através de associações de mobilização coletiva dos trabalhadores, através do sindicato, através de coletivos feministas, através de uma série de outras esferas que eu sinto necessidade para me cumprir plenamente enquanto cidadã.
Nesse sentido, a cultura, e o teatro em particular, pode dar respostas, mas também pode fazer perguntas e questionar.
O teatro, se tem alguma obrigação, é a de fazer perguntas. Não tem obrigação nenhuma de dar respostas. Pode fazê-lo, porque pode tudo, mas não tem de. Aquilo que é mais interessante é que o teatro só se completa com o público. Só se completa no momento em que estreia, no momento em que acontece, no momento em que há público. Até lá só há ensaios. E isso não é um teatro, são ensaios. Depois, quando acaba, acaba o teatro e só há memória do espetáculo, só há memória do que aconteceu. Então, significa que o teatro são momentos muito breves que acontecem no momento em que o público e os atores se encontram no mesmo espaço e onde acontece qualquer coisa, mas é muito breve. E depois acabou. Então aquilo que o público faz com o que recebe é da sua responsabilidade. Claro que pode sair do teatro e pode incendiar bancos, mas aí já não é nossa responsabilidade. Acho que a nossa responsabilidade é incendiar as ideias. O que as pessoas fazem com elas depois já não temos nada a ver com isso. Mas claro que gostaríamos muito de poder lançar perguntas para que as pessoas possam sair para a vida mais instigadas e acabam por procurar elas as suas respostas.
Estando nós em Guimarães, acreditas que a questão do centralismo é algo que tem que ser combatido?
Eu acho que o que tem que ser combatido são políticas sérias, concretas, naquilo que é o acesso de todos os cidadãos a toda a oferta do estado social e do que é uma oferta pública, seja em termos de rede de transportes, seja em termos de hospitais, em termos de escola pública, seja em termos de teatro, seja aquilo que é a nossa Constituição. Acho que esse sonho, que é também um sonho de abril, é um sonho que ainda não foi cumprido em muitos sítios do nosso país. Basta andarmos um pouco pelo país para percebermos, e continua a ser chocante, que uma pessoa que tem um AVC no Fundão tenha mais probabilidade de morrer do que uma pessoa que tenha um AVC em Lisboa, porque tem mais acesso àquilo que são os cuidados imediatos. Não gosto de falar de centralismo, porque isso ou de descentralizar porque isso implica acharmos que há um centro e uma periferia. O que eu acho é que é muito importante ativarmos todos os mecanismos daquilo que são as respostas públicas de todos os cidadãos e cidadãs que habitam em Portugal e que não são sequer portugueses. Há tantas pessoas que habitam o nosso país, e Guimarães, que não são vimaranenses. Aquilo que eu gostava de fazer é dar o meu contributo com aquilo que são as minhas ferramentas, à frente de uma instituição como é o Teatro Oficina e cumprir aquilo que é uma missão de serviço público que é fazer teatro, fazer bom teatro, boas propostas culturais que desafiem as pessoas, que desafiem qualquer pessoa que venha aqui ver e, sobretudo, que quebrem barreiras de acessibilidade. A acessibilidade não tem só a ver com haver rampas para as pessoas entrarem, é preciso mesmo que pessoas saibam que aqui acontecem coisas e que este é um espaço que também é delas. São acessibilidade intelectuais, são acessibilidade de várias formas e, portanto, é nisso que eu estou a trabalhar, naquilo que é o cumprir a minha missão que é prestar um bom serviço público.
De onde é que vem essa tua vontade de querer mudar o mundo?
Acho que enquanto estou viva é a única coisa que eu posso tentar fazer, não é? Não consigo imaginar como será a vida sem esse objetivo. Não sei de onde é que vem, nem o que é que ela muda realmente, mas sei que há uma coisa importante, que é nós e a saúde mental, que é uma coisa que temos que começar a falar mais… é muito importante nós encontrarmos motivos para sair da cama todos os dias. Eu encontro nessa vontade de todos os dias, diariamente, poder mudar alguma coisa, a vontade de sair da cama. Acho que para mudar o mundo não é preciso fazer grandes coisas. Não acho que para mudar o mundo seja necessário encabeçar grandes lutas. Acho que cada um pode fazer a sua parte e se nós conseguirmos mudar o outro ou ativar a nossa empatia e alterar um pouco a vida do outro, que está à nossa volta, ajudá-lo a entrar no comboio, já estamos a começar a contaminar o mundo com mais empatia, com mais bondade. Há mesmo muita coisa para ser mudada e se nós trabalharmos todos um pouco mais a empatia pelo outro, seríamos bastante mais tolerantes com aquilo que é a diferença e o desconhecido. Acho que teatro tem uma função nisso.
Disseste que nada é certo na vida, no teatro, em tudo… Começaste a estudar teatro com 14 anos e depois foste para Lisboa com 16. De que forma é que isso te moldou, ou não?
Não sei responder isso, porque seria tentar fazer um exercício de uma vida paralela que não vivi. Foi a vida que eu vivi e fez-me chegar até aqui, as experiências todas que eu fui juntando. Foi importante para mim de diversas formas. Morar sozinha, com 16 anos, foi muito importante, morar numa cidade como Lisboa foi muito importante, morar sozinha e começar logo a trabalhar com essa idade e, portanto, ter toda uma responsabilidade de pagar segurança social, finanças, de fazer toda uma gestão doméstica, daquilo que são as minhas contas e, sobretudo, estar numa cidade com uma grande oferta cultural, foi muito importante para aquilo que foi o meu crescimento também enquanto cidadã, enquanto espectadora, enquanto atriz. Não trocaria. Não sei como é que teria sido de outra maneira, não romantizo, nem acho que se deve romantizar a questão do sofrimento de morar sozinha tão cedo. Foi a história que eu tive, foi a minha história e acho que todas elas são válidas, todas as experiências são válidas, nomeadamente alguém que, aos 50 anos, se despede de um cargo de contabilidade para se tornar ator. É tão válido como começar a estudar teatro aos 14 anos.
É fácil dizer a um pai, a uma mãe, que se quer seguir por esse caminho?
Depende dos pais e das mães, depende de como é que nós vivemos, depende daquilo que nós somos, depende das nossas famílias e das dinâmicas familiares, depende do sítio onde vivemos, depende da classe social onde pertencemos. O privilégio é uma coisa que tem muitas esferas e nós, às vezes, não nos consideramos privilegiados porque é difícil aceitarmos esse lugar de privilégio, mas a verdade é que eu fui muito privilegiada em muitos contextos. Desde logo porque os meus pais sempre tiveram acesso a cursos superiores e nunca ambicionaram para mim a vontade de que eu prosseguisse os meus estudos num curso superior e isso vem porque eu não faço parte daquelas famílias em que ninguém tinha estudos superiores e estava reservado essa promessa de ser eu a primeira da família a ter uma licenciatura. São muitas histórias diferentes. É tão difícil dizer que se quer estudar teatro, como deve ser difícil, dependendo dos contextos familiares, revelar-se outras coisas de si próprio, nomeadamente a homossexualidade, a questão não binária. Depende daquilo que as pessoas são e das famílias que têm. A única coisa que eu posso dizer é que sempre fui muito feliz a fazer aquilo que faço. Foi tão duro como se tivesse ido para qualquer outro curso, porque, hoje em dia, todos os cursos são duros. Se posso dar algum conselho a algum pai, alguma mãe, algum avô, avó, encarregado de educação que esteja a lidar com esta questão de ter alguém a seu cargo que gostaria de estudar teatro, mas que tem medo daquilo que é o futuro, posso, por um lado, dar um conselho terrível, que é que vai ser tudo horrível, independentemente do que a pessoa siga – medicina, advocacia ou teatro. Mais vale deixar que as pessoas sejam felizes durante os anos em que estão a estudar e que possam pelo menos ter três anos de felicidade enquanto estão no teatro e depois sejam frustradas no desemprego, do que começarem logo a ficar frustradas durante o período em que estão a estudar. Por isso, o meu desafio é que as pessoas sigam aquilo que querem seguir, independentemente daquilo que a vida depois vai fazer, porque mesmo as conquistas que se tem na vida são também fruto de várias coisas, como privilégios e estar muitas vezes na hora certa, no momento certo. Tem muito a ver com sorte. Acho que uma das grandes mentiras que nos contam é dizer “trabalha muito”. Isso é uma grande mentira que é preciso ser desmontada, porque é uma mentira que só beneficia o grande capital e o neoliberalismo em que acabamos por nos explorar cada vez mais e nos individualizar uns aos outros e ficar cada vez mais aguerridos uns com os outros. É preciso muito trabalho, sim, como em tudo, mas também é preciso muita sorte e, infelizmente, a sorte não acontece sempre a toda a gente. Há muita frustração que podia ser resolvida se não romantizássemos nem alimentássemos esta ideia de que tudo é apenas por um trabalho árduo. Temos todos de cuidar mais de nós.
Começaste na televisão, mas agora estás mais focada no teatro. É no teatro que queres continuar?
Não tenho grandes planos para a minha vida. Tenho um plano, que é acabar 2022 no Teatro Oficina. Esse é o plano com que estou comprometida e que me entusiasma todos os dias e que me faz sair da cama para vir para aqui, para pensar nisto. A ideia de fazermos a mesma coisa até ao final da nossa vida é muito ultrapassada e não tenho sequer a certeza se vou continuar a ser atriz até ao resto dos meus dias. Acho que não. Acho que daqui a 10 anos estou a mudar profissão, que vou estudar outra coisa, vou mudar completamente e gostaria que tivesse tudo certo, que ninguém me exigisse nada. Acho que éramos todos mais felizes se pudéssemos seguir esses impulsos naturais.
Agora estás em Guimarães. Já é uma cidade que consideras casa?
Sim, sobretudo o Espaço Oficina. Já tenho microondas, fervedor de água, posso oferecer café a quem quiser aparecer aqui… Isso é o princípio da casa. Tenho um teto, um espaço que não tem humidade, um espaço quente… Um espaço preparado para fazer, pensar e receber teatro e, por isso, não nada me podia fazer mais feliz.
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