Depois d’“Os Operários”, “A Fraternidade” e “Romeu e Julieta”, Miguel Moreira apresentou, em Guimarães, “Hamlet, L’Ange du Bizarre”, uma peça “disruptiva e labiríntica”. À Mais Guimarães, falou da peça e de como surgiu a arte na sua vida, algo que o acompanha desde sempre.
O que é que podemos esperar deste “Hamlet” e como é que foi feita esta adaptação?
É a partir de. Comecei numa companhia, O Bando, que já na altura não usava textos teatrais, era sempre a partir de textos não convencionais. Acho que essa questão de criares a partir de alguma coisa… Os textos fazem sempre parte de todas as criações, e os livros. Há sempre livros, há sempre palavras, e nem sempre as palavras entram.
Desde “Os Operários”, acho que é um ciclo onde há palavras, mesmo n’“A Fraternidade” há no início um conjunto de palavras. Aconteceu, intuitivamente, achei que fazia sentido. No caso do Shakespeare, achei que, mais tarde ou mais cedo… Já me tinha confrontado como ator várias vezes… É um autor de cabeceira, no sentido labiríntico, de difícil compreensão, trágico muitas vezes, cómico. As coisas têm sempre uma amplitude desmedida. Podem ser muita coisas. Precisas de tempo para te debruçar sobre aquilo – ou não –. É o teu livro de cabeceira e vais petiscando.
Um homem que caminha solitário, à procura de si e do seu encontro consigo mesmo e com o mundo, será sempre contemporâneo, direi eu, em qualquer época. Nunca neguei os clássicos. Tentei negar foi as estéticas de que tínhamos de fazer as coisas de uma determinada maneira ou as fugas utópicas para lugares desconhecidos. E aí é onde tenho estado ou tentado estar.
Marca a irreverência?
Podes-me dizer tudo isso, mas não é pelo sentido irreverente, é pelo sentido de horizonte, ir num caminho que, realmente, pode ser tormentoso no caminho do desconhecido. Atrai-me.
E o “Hamlet” é muito sobre a condição humana…
Não acho que seja só o “Hamlet”. Todo o Shakespeare é um tratado filosófico que pode ser de época, daquela época, mas que atravessa todas as épocas. Isso talvez é algo que me interessa. É interessante como matéria artística. E aqui não são só as palavras, é o uso do ferro, que oxida, gasta-se, fica marcado. Tu podes tentar que ele fique outra vez com a beleza que tu queres, passas uma lixa… Toda a cenografia desta peça tem uma ligação.
Compreender o mundo através dos materiais… Isso é novo. O barulho, quando chocalham, quando a Ofélia começa a amar demais, se calhar. É uma peça inquieta. Ainda estou a descobri-la. Quando sai uma peça nova não consigo logo pensar “a peça é isto, isto e isto”.
Vai-se descobrindo à medida que vai estando em cena…
Sim, se calhar daqui a dez anos é que descubro. Vejo o vídeo e às vezes até tem coisas de outros autores, que nem te apercebeste, mas está lá. São inquietações que tu sentes, de alguma forma. Estás fechado, numa bola de ferro, tentas sair mas és um fantasma, não és uma pessoa. Isso tem imensos significados.
Quantas pessoas temos em palco?
Cinco. Um elenco mais pequeno que “A Fraternidade”. Mas parece uma peça cheia. Não é uma peça vazia, não é minimal. Sou um antipurista nisso. Não gosto de estética hospital, tudo purado. Não me identifico. Ando, talvez, não sei, por causa da idade, a questionar mais o fim.
Esta peça já foi apresentada em várias cidades. Como é que tem sido a reação do público?
Acho que ficam em silêncio. Não saem… Sai um ou dois.
Sair no fim ou a meio?
Em Torres Vedras comecei a falar com o público, porque me apeteceu, e houve uma pessoa ou duas que saíram logo. Acho isso muito interessante. “Depois disto tudo ainda tenho que o ouvir?”.
“Sempre vi a arte como um sítio de incompreensão”. A arte precisa de ser compreendida?
Não. Fui sempre um espectador da incompreensão. Sempre adorei ver coisas que não compreendia. “Fui ali e compreendi tudo”. Acho que as pessoas dizem isso como defesa. “Ah, não compreendi”, não quiseste entrar, não é não compreendeste. Claro que tu compreendeste. És adulta, não compreendes o quê? A gente pode é não entrar, pode não se identificar, pode não gostar, pode achar que tem má qualidade. Isso é outra coisa. Mas não entras porquê?
Mas a arte também essa função de questionar?
É só essa função. Passado 30 anos eu não estou preocupado se tu gostas ou não. Estou preocupado na linha e no caminho daquela obra. Como estou a fazer num teatro, normalmente, acho que vão aparecer pessoas. Sejam 10, 20, 200 ou 400. Estão lá. Não estou a pensar nisso. Às vezes as pessoas odeiam as peças d’O Útero. E eu acho bem. Como gosto muito que adorem. Não posso obrigar as pessoas a gostarem de uma coisa. Nunca estive aí nessa necessidade de aprovação. Nem ninguém deve estar.
Estiveste sempre ligado à arte…
Os meus pais conheceram-se no teatro, a minha irmã foi muito rapidamente bailarina da Gulbenkian. Sempre quis ser artista. Mas, se calhar, queria ser artista plástico e depois derivei. Nunca quis ser ator, mas ganhava muito dinheiro. Não tive isso de “quero ser um grande ator”, nem sei o que é isso. Há um desfasamento entre o que é que é ser um ator. Um ator é uma devoção. É como ser padre. Não vejo toda a gente a dizer que quer ser padre. Ator é uma devoção em que tu vais fazer um percurso interior profundo em comunhão com os outros.
Eu conseguia chegar mais aos outros como ator. Mas continuei a pintar e ainda hoje, quem cria os cenários com o Jorge Fonseca é o Jorge Rosado, que sou eu.
E como é e qual a importância de trabalhar em família?
É muito grande para mim. Está interligado na minha vida. Quando criamos em conjunto, eu e a Maria, é um tormento. Mas o resultado é um tormento muito bom. Há coisas que acontecem que são incríveis.
Como é que vês o ensino artístico em Portugal?
A escola artística no teatro e na dança está completamente desfasada da realidade. Estão a formar… Se é essa a palavra, formar é para quê? Ou é um interesse intelectual, que acho ótimo, um pensamento sobre determinada área. O que eu acho é que os professores raramente falam da amplitude das estéticas. Se calhar têm medo, não sei. Eu às vezes dou aulas, mas digo sempre que não sou professor, digo umas palavras como artista. Para mim, basta que me amem em casa. Não estou obcecado que os alunos me amem. É como o público.
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