Gilmário Vemba voltou a pisar o palco do São Mamede. Três anos depois da sua primeira visita à cidade berço, com “Hipoteticamente (Bom)”, apresentou-se com “Temas”, um espetáculo que se renova todas as semanas. À Mais Guimarães falou sobre a sua evolução enquando humorista, o medo que ainda persiste na hora de contactar com o público e o cuidado que existe na escolha dos temas a abordar.
Apresentaste “Temas”, aqui no São Mamede, e ao longo do ano propuseste-te a apresentar um espetáculo novo todas as semanas. Como é que é este processo de criação?
É um processo duro, em que até penso “ai meu Deus como é que me meti nisto”. Nós temos basicamente 41 temas. Todos os domingos temos a responsabilidade de fazer um tema novo, todas as semanas. Nos espetáculos que fazemos fora de Lisboa, misturamos os temas todos. Como em Lisboa fazemos na mesma sala, todos os domingos, um espetáculo, ali temos de nos cingir simplesmente ao tema. É trabalhoso, mas aproveitamos sempre os espetáculos em outras cidades do país para ir experimentando algumas coisas, que é para não chegarmos a um espetáculo completamente a testar. De facto, o espetáculo é difícil porque são 41 temas, 41 horas de espetáculo, que tem de ser feito todas as semanas de forma diferente.
Em que é que te inspiras? Quando falas dos teus filhos, por exemplo, são histórias que acontecem mesmo?
O meu espetáculo costuma ser, normalmente, 90% de experiências minhas, daquilo que faço. Também fica mais fácil para mim e não corro o risco de repetir coisas. Aproveito toda a experiência do meu dia a dia e dou “aquele” toque na narrativa. É uma narrativa engraçada que eu faço sobre as histórias, mas elas acontecem. O meu filho fez as coisas que eu disse que fez, e a minha filha também. São coisas que acontecem comigo e também que eu vou imaginando.
E a interação com o público é algo que gostas?
Eu gosto. Se bem que, como sou uma pessoa mais tímida, às vezes tenho muito medo de interagir com público, até porque não quero deixar ninguém desconfortável. Tenho sempre esse cuidado. Às vezes, quando queremos interagir com alguém, pode ser que essa pessoa não queira muito estar ali exposta, então eu evito ao máximo. Mas eu curto, e para mim é interessante quando estou a contar a piada observar a reação das pessoas. Para mim, isso também conta como interação, não só fazer o crowd work, que é perguntar coisas à plateia e depois usar isso para fazer uma piada, mas ainda não tenho muito jeito para isso. Tenho sempre medo de dizer uma coisa que coloque desconfortável quem só veio para curtir um bocado.
E já aconteceu alguma situação mais complicada, mais caricata em cima do palco?
Não, não. O máximo que pode acontecer comigo é de a piada não ter piada, não ser engraçada. É esperar uma certa reação naquele momento, em que preparas a tua punch line, e depois no palco sentires que não era bem aquilo. Mas em relação a ter alguma reação negativa por parte do público, como alguém levantar-se e sair, nunca aconteceu.
Esta não foi a tua primeira vez em Guimarães. Como é que é o público aqui?
Nem quero que seja a segunda só, quero mais [risos]. Hoje eu vim e senti que eu é que mudei. Eu estou bem mais à vontade, mais tranquilo a interagir com o público português. Nas minhas primeiras interações há sempre aquele medo: “será que se eu disser uma coisa dessas eles vão levar a mal? Será que se eu fizer uma piada e usar um certo termo, eles vão gostar?”. Era a minha entrada no mercado português e eu estava com mais medo.
Se calhar quem esteve aqui no primeiro espetáculo também há-de ter sentido que o Gilmário esteve bem mais leve e mais à vontade a fazer o espetáculo. Mas, naquela altura, era o primeiro espetáculo da tour, era a primeira vez em Guimarães, e eu só pensava “meu Deus, como é que eu me ponho nestas coisas?”.
No início do espetáculo fiquei um bocadinho receoso de as pessoas não gostarem, mas graças a Deus correu bem. Hoje cheguei bem mais tranquilo porque vocês me receberam super bem da primeira vez. Saí daqui a pensar: “meu people, aqui estou tranquilo”.
Já sentes o carinho dos portugueses?
Muito. Esta tour mostra, claramente, o carinho dos portugueses por Gilmário Vemba. Não tenho do que reclamar, tenho uma tour que está sempre esgotada, espetáculos que estão sempre sold out. Isso é um sinal de que as pessoas realmente gostam, estão a curtir, e não tem a ver com o norte, nem com o sul ou centro, porque é mesmo em toda a parte. Não que estejamos a fazer um número de espetáculos louco, mas, ainda assim, para mim isso conta muito. Mesmo aqueles sítios em que a sala é de 90 ou 100 pessoas, eu fico mesmo “uau, está esgotado, havia pessoas que queriam entrar e nem conseguiram”.Quer sejam salas de 1.000, 2.000, 700, 100 ou 50, eu quero ir a todo o lado. Já estou como a Comercial: é no carro, em casa e em todo o lado. [risos]
E não foi preciso uma catana… tal como ironizaste no espetáculo [risos]
Não, e queria eu que todo o processo fosse assim. Que fosse só com arte, com desejo de partilha de coisas do ponto de vista cultural. Até quando toco nessas histórias é como poder encontrar um ponto de convergência em que podemos falar e até rir desse passado que nos juntou. É a razão pela qual nós somos um povo que interage muito, no caso dos angolanos e portugueses.
Falando disso, e porque uma vez disseste que o humor é uma arma da crítica social, perguntava-te se o humor é preciso também como uma arma. É necessário o humor para falar de temas que ainda são considerados tabu?
O humor é super necessário. O humor tem o poder de te levar para uma situação ou um assunto que é desconfortável de debater, que são os tabus que nós temos, e desconstruí-los. E quando o humorista é bom, as coisas fluem melhor porque facilmente uma piada pode passar a um insulto. Por isso é que é preciso ser muito meticuloso, principalmente quando são assuntos muito difíceis de debater. Eu não toco em assuntos que desconheço, que é para não estar só na falácia. Se não conheço a fundo, não vou fazer piada sobre esse assunto. Não porque eu tenha medo ou ache que não se deva fazer piada com isso, porque para mim dá para fazer piada com tudo, mas se queres fazer piada tens que mergulhar bem nos assuntos. Domina bem o assunto pelo menos a 80 ou 90%. Assim, não corremos o risco de desrespeitar quem o conhece melhor ou às pessoas envolvidas nesse mesmo assunto.
Se quiseres falar sobre racismo, colonização, escravatura, homofobia, gordofobia, todo o tipo de fobias ou preconceitos, não fales só por falar. Mergulha um bocadinho na história do assunto, tenta entender nem que seja, como se diz em informática, na ótica do utilizador, para não correres o risco de ser desrespeitoso.
Nesse sentido, os anos 80, em Angola, influenciaram-te e fizeram com que a tua criatividade fosse a que tens?
Não há nada que impulsione mais a criatividade do que a dificuldade. A dificuldade desperta o humano. Nós temos esta capacidade de nos adaptarmos e de nos readaptarmos às situações, e fazer isso exige criatividade.
Eu nasci e cresci numa época um pouco conturbada, com a guerra e com tudo, em que as pessoas que me criaram já vieram da mesma situação. O teu avô lutou, o teu pai lutou e tu também cresces nessa luta. Sempre houve a necessidade de criar, de ir em busca da paz, da luz, nem que seja dentro de ti. Isso ajudou, obviamente, e acho que me deu um clique. Fui buscar isso e utilizei para uma coisa benéfica para mim, porque não é uma coisa boa. Não é como se para sermos bons artistas tivéssemos de ir para um país em guerra, ficar lá, crescer naquele ambiente. Não é essa a mensagem, mas eu consegui encontrar uma maneira de pegar nisso, contar essa história, e levar uma mensagem às pessoas. É ter awareness das coisas.
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