Viajamos para o ano de 1179. D. Afonso Henriques, impossibilitado de conduzir os destinos do reino desde o fatídico acidente de Badajoz, reúne seus filhos e corregentes, D. Sancho e D. Teresa, para revelar a sua frustração por estar a chegar o fim da sua vida e não ter sido reconhecido pela Santa Sé o estatuto de Rei e o reconhecimento do Condado Portucalense como reino independente de Leão e Castela.
“Em 1179, o Papa Alexandre III concede a D. Afonso Henriques a Bula Manifestis Probatum que reconhece Portugal como reino independente e como seu Rei D. Afonso Henriques”. Finalmente independentes.
“Do Condado ao Reino” deu o mote para a edição de 2022 da Feira Afonsina. O público foi convidado a viajar no tempo com o Paço dos Duques como plano de fundo. Fechar os olhos e ir. Ir e viajar no tempo até bem bem longe, conhecer o nosso passado, ter aulas de história ao vivo e estar com personagens históricas.
As cores, a música, o cheiro. A cidade ganha outra magia. Ouvem-se espadas e ouve-se festa. Do Monte Latito à vila de baixo. A cidade veste-se e dá a conhecer o seu passado. Os dias são longos e não há desculpa para não brindar a Guimarães.
Chegámos à Feira Afonsina pelo Campo de São Mamede e é tempo de conhecer os que nos dão vida por estes dias. “Na encosta do Castelo de Guimarães a aldeia fervilha de vida, é preciso afirmar um território, um povo, uma cultura”, lia-se no programa que nos guiava. Foi aqui que João Maia, responsável pelo grupo Espada Lusitana, confessou que esta feira “é uma referência”.
Estão em Guimarães desde o primeiro ano e, acrescentou, “atualmente é o melhor evento que existe em Portugal”. “Em Guimarães, tiveram a coragem de dividir o evento em duas partes, a parte da recriação histórica, em volta do Castelo, e, o resto da cidade, a parte mais comercial, que é importantíssima, mas eu acho bem separarem”, argumentou.
Após dois anos de interregno o suspiro é só um: “até que enfim!”. Apesar de os eventos estarem “a começar a ser um pouco mais pequenos”, acredita e espera que, para o ano, tudo vá normalizar. Até porque, “a nível de qualidade, estão aqui os melhores grupos que existem em Portugal, portanto, tem tudo para dar certo”.
Um cenário perfeito para as crianças, com animais, jogos e muitas brincadeiras. Estamos no Paço dos Duques e a vontade de experimentar cada especiaria de que sentimos o cheiro é grande. Tal como a vontade de experimentar todas as atividades para crianças. Mas se podemos viajar no tempo, temos aqui a desculpa perfeita para voltar a ser criança.
Descemos o jardim do Carmo não sem antes nos sentarmos à mesa e partilharmos uns petiscos. Um pão com chouriço e uma sangria ou uma limonada. O jantar que, todos os anos, repetimos. Talvez depois ainda haja espaço para um crepe – sem chocolate que na altura não havia! -.
Vamos às compras. O comércio era uma das principais atividades económicas naquele tempo. Depois de ver todas as barraquinhas, de comprar o colar e o anel anual, de fazer mais uma tatuagem e de ver como nos fica uma coroa de flores, seguimos caminho.
“Ensombrados pelas flores e folhas de laranjeira escondem-se aqueles que da sociedade procuram retiro. Os seus produtos e crenças pertencem ao oculto”. Conselhos, consultas, pedras com poderes especiais, ervas medicinais, amuletos, mezinhas e outros produtos místicos. Há de tudo para quem por aqui passa.
Chegamos agora ao espaço da Feira Afonsina que, já em 2019, não existiu. Foram três anos de pausa e a vontade de regressar era enorme. Não só para os atores, mas também para o próprio público que todos os anos vive intensamente o quelho das desgraças, o habitat dos larápios, dos pedintes, das meretrizes, dos loucos e dos empestados. A esterqueira, os objetos de tortura, o pequeno altar dos renegados, as padiolas, o carro dos cadáveres, os baldes da água de lavar feridas…
Esta rua sombria, o quelho das desgraças, tem muita afluência e o público procura-a. Quem o confirma é Patrícia Caeiro, coordenadora do grupo de teatro Tentart. A Feira Afonsina, acredita, “tem tudo para evoluir ainda mais agora que recomeçamos e melhorar cada vez mais”.
“É das melhores feiras, porque o cenário natural da feira é fantástico, porque entramos logo num ambiente medieval só por si”, revelou. E a verdade é que o próprio cenário ajuda um ator a trabalhar. Depois há a questão do público. O público de Guimarães “é muito interventivo, muito amistoso, trata-nos muito bem, gosta muito de nós, entra muito na brincadeira”.
Paramos na praça de Santiago e na Oliveira para rever os amigos que, por esta altura, também regressam à cidade-berço. Vimos recriações históricas, vimos teatros, ouvimos músicas, voltamos a brindar e dançamos. Dançamos com os MD5, um grupo de Santa Maria de Feira que já faz a Feira Afonsina há cerca de oito anos. A forma como aqui chegaram é, porém, diferente dos outros grupos com quem nos cruzamos. “Foi através do trabalho com a comunidade”, explicou Diana Carneiro dizendo que este é um trabalho que caracteriza o grupo. “Interessa-nos muito trabalhar nos territórios com a comunidade, com as pessoas, com as histórias das pessoas, de cada lugar onde vamos”.
A opinião sobre a Feira Afonsina parece ser comum a todos. “Guimarães é especial para nós por ser segunda casa, porque desde há muito tempo que nos acolhem sempre muito bem. Regressar é maravilhoso”, agradeceu Diana Carneiro.
Subimos agora pelo lado oposto e, guiados pelo Prior da Colegiada, tivemos a oportunidade de conhecer a vivência de uma comunidade religiosa medieval e as suas particularidades. Definindo uma nova centralidade na Guimarães Medieval, frades e fratizas desenvolvem as suas vivências entre a vida terrena e o culto da alma, lançando os alicerces daquela que viria a ser um ex-libris da capital do Reino: Colegiada de Santa Maria da Oliveira.
Continuando a subir, cruzamo-nos com o conhecido e adorado por todos Bobo da Corte Tosta Mista. O regresso era muito esperado e as expectativas foram cumpridas: “maravilhoso”. Sente que havia a necessidade, por parte de toda a gente, “de consumir cultura”.
Uma vez mais, fomos brindados com um sorriso no rosto e um “obviamente, é uma feira especial”. E apesar de não ser de Portugal, o alemão Thorsten já se sente um bocadinho português e sente, tal como nós, esta celebração do nascimento de um país.
Esta personagem do bobo da corte é uma personagem que muito estimula e que gosta muito, “porque é muito mais solta e dá mais possibilidades do trabalho do clown”. Além disso, permite uma um trabalho com o público quase sem limites. “É muito gratificante, porque trabalho com toda a gente. Não há limitações. São crianças, são adultos, são idosos, são pessoas com deficiências… e todos reagem bem”. É uma multidão que se junta para assistir ao seu espetáculo. “Esta energia nasce do nada e estamos juntos meia hora em que celebramos, celebramos a vida, celebramos a cultura, celebramos os espectáculos e celebramo-nos a nós próprios. Esquecemos todos os problemas. Por uma meia hora, não existem e deixámo-nos guiar pelo acontecimento”, terminou.
Quelho das Desgraças: O Louco
Com a paragem de três anos no Quelho das Desgraças, Patrícia Caeiro diz que “houve mudanças nas vidas das pessoas e nem todos estavam com a disponibilidade que nós já contávamos ano após ano”. No quelho das desgraças, foram menos que o habitual, mas, ainda assim, “foram muito valentes, muito fortes, muito resistentes”.
Serafim Mota e a sua personagem, o louco, fazem parte de um núcleo que, ano após ano, marcam presença no quelho das desgraças. Aquilo que nos apresenta, é fruto de um trabalho de uma equipa, os Tentart, que o acompanha, tal como a todos os voluntários. Havia “fome e sede” de regressar e o resultado é sempre “gratificante”.
Para o ator, este é um evento “fundamental para a cidade de Guimarães e para a sua projeção” pois são muitas as pessoas que por cá passam. No quelho das desgraças, passam milhares de vimaranenses e turistas também. “É fantástico”, disse lembrando que “as pessoas passam uma vez e depois tornam a repetir. No dia a seguir repetem a dose. Vivem com intensidade e admiram o trabalho de cada ator. Não há palavras para descrever a forma como olham para nós, vamos ouvindo os comentários”, confessou. Recordou o momento em que, na noite de sábado, subiu às caixas existentes na rua. “As pessoas todas apinhadas… vê-se aquela moldura humana, aquele calor humano…”, suspirou.
“Sou suspeito de falar da minha personagem, mas viver a personagem do louco… é uma personagem profunda, puxa muito de mim”, começou por dizer. “Mas essa pergunta será um bocadinho para o público, são eles que têm a resposta”.
Serafim vai para a rua e, ali, trabalha o momento dando o seu melhor. Um espaço estreito e escuro, cheio de elementos que podem ser aproveitados pelos atores. “Aquela rua é completamente adequada e está preparada para a rua do quelho”, diz acreditando não haver uma melhor em Guimarães para tal. “Vivemos intensamente cada esquina, cada pedra, cada escada”, confessou.
E o público vive-o de igual forma. “Estes quatros dias são fora do comum: as pessoas, o público e o ator vivem intensamente”, pensa o ator.
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