Nelson Xize tem 35 anos e Guimarães é a sua casa. O nome Xize vem do irmão, conhecido como X-Men pelos amigos, por ter “superpoderes” a jogar futebol. Nelson, pelas “skills de desenho”, ficou conhecido como X-Men Júnior. O nome foi-se alterando, até chegar a Xize. “Não é o cheese, queijo literário, mas é uma metáfora do rato que vai à procura do seu alimento”. O artista que batalha e “vai, entre as ruas da dificuldade, tentar fazer o que o faz mais feliz”.
Como é que surgiu a arte na tua vida?
Um resumo… Desde pequeno, os meus hobbies, a melhor distração para mim, a melhor prenda que me podiam dar, era um caderno quadriculado, ou de linhas, ou uma sebenta, e eu com as canetas da Bic, a vermelha, a verde, a azul… O que é que fazia? Guerrinhas de robots, com aliens. Gostava de fazer desenhos do Dragon Ball, passava muitas horas a desenhar. A minha irmã mais velha – eu tenho seis irmãos –, também tinha muito jeito para desenhar e acho que herdei um bocado esse ADN dela. Para mim foi uma influência, na altura, para começar a desenhar. No ensino básico tive uma professora de educação física que era, além de professora, amiga. Foi ela que me inscreveu, ou ajudou-me, a inscrever-me em artes. Havia aquele estigma “vais para artes, isso não dá dinheiro”. Ainda vivemos um bocado esse estigma. Na altura, ela deu-me o input para me inscrever em artes. Cada vez ganhava mais amor, principalmente pelo desenho.
Para haver uma boa pintura, ou uma pintura bem conseguida, tem que haver também um bom desenho mental. A primeira ideia parte do desenho, para a conceção de qualquer coisa, por isso sempre apostei no desenho. A pintura foi aparecendo como suplemento. Hoje em dia, se calhar, faz mais parte do meu dia-a-dia a pintura, mas considero que o desenho e a pintura estão alinhados. Sempre trabalhei, a partir dos 13 anos. Nunca deixei os estudos. Já trabalhei em várias coisas: pasteleiro, repositor, promotor, muitas coisas, para chegar onde cheguei e poder fazer aquilo que gosto.
Depois, então, entrei para a ESAP. Apanhei bons professores. Entrei em Belas Artes no Porto, que era o que me cativava mais, mas preferi ficar aqui, na ESAP, por questões de custos. Acabou por ser bom, porque os professores eram de Belas Artes do Porto e Lisboa. Ou seja, acabei por apanhá-los aqui, alguns, e foram cinco anos longos, de muito trabalho. Senti que evoluí bastante, mas também trabalhava muito para isso, não era de faltar. Por me sair do bolso, e me custar, sempre agarrei as coisas de forma séria e levo as coisas muito a sério quando encaro um desafio. A faculdade ajudou-me nesse processo de maturação, tanto a nível de ensino e aprendizagem, até absorver esses conteúdos e depois descobrires a tua identidade, maturá-la, experimentares…
E o teatro?
O teatro foi há 10, 12 anos. Nunca pensei na vida. Quando era mais novo era mais acanhado. À medida que fui crescendo fui ficando uma pessoa mais espontânea, brincalhona, mais segura de si. O teatro é um bom exercício de autoconfiança. Há 12 anos, comecei no TERB, Teatro de Ensaio Raúl Brandão, ali no CAR. Na altura foi a primeira peça, salvo erro, Assassinato de Francisco Agra, encenada pelo Romeu Anjos Pereira, do ATC, do Teatro Construção, de Joane. Meteu-me o bichinho do teatro. Adorei a experiência. Conheci pessoas espetaculares, que hoje em dia são minhas amigas, de várias faixas etárias. Era um grupo dos 12 aos 60. A partir daí não consegui viver sem o teatro. Já participei em vários projetos, com muitas pessoas diferentes.
Hoje tenho o projeto dos FunnyToches, com a minha namorada, está a ser um sucesso. Trabalhamos muito a pedagogia com crianças, as problemáticas, temas como o plástico, com a peça A Viagem à Ilha do Plástico, temos A Magia dos Brinquedos, que retrata o acreditarmos nos sonhos. Se acreditarmos nas coisas, as coisas vão-se concretizar, porque, automaticamente, temos que fazer por elas. Também tenho o grupo Trupe Sei, fazemos recriações históricas, animações em eventos, ativações de marca…
Adoro o palco. Adoro ver 500 pessoas à minha frente e tentar contagiá-las com a verdade do teatro. Para conseguires passar a verdade do teatro, tens que saber o que estás a dizer e o que estás a fazer.
Consideras-te uma pessoa criativa…
Sim. Acho que criativa de forma natural. Ou seja, não sei se tenho alguma coisa especial. Mas sou uma pessoa muito observadora, muito atenta, e depois os meus manifestos, seja desenho, pintura, teatro, ilustração, beatbox, percussão, acho que são reflexo disso. Essas frequências… adoro. Por exemplo, não consigo pintar um ano inteiro. É sazonal. Três meses pinto, três meses desenho, três meses faço teatro. Gosto desse exercício de frequências, para a cabeça, acho que faz bem.
Além da tua irmã, que referiste há pouco, quais são as tuas influências?
As minhas influências… tenho muitos artistas que, para mim, me dizem. Mas influência, não há uma pessoa específica que me influencie. A não ser isso, pronto, na altura pontual a minha irmã.
O mundo onde eu vivo é um bocado a influência que me molda enquanto ser humano. Não idolatro, nem tenho uma admiração por alguém específico. Acho que todas as pessoas são importantes. No mundo das artes estou sempre atento, face ao que me rodeia estou sempre atento. O que faço é um bocado reflexo disso. Admirar, admiro o mundo, admiro o que me rodeia, admiro as pessoas, que são cosmos. Todas as pessoas são cosmos. E adoro conhecer pessoas. Olha, admiro o meu espírito de viver, não sendo egocêntrico.
Sobre que questões é que gostas mais de trabalhar?
O que é que eu pretendo, também, com o trabalho? Eu tenho um tipo de trabalho, digamos, o comercial, o retratístico, o cartoon, aquela ilustração específica de Guimarães, temáticas ligadas às cidades, cultura vimaranense, cultura portuguesa… Mas onde me sinto, realmente, ou consigo tocar… Porque… o que é tu pretendes como artista? Também é criar as reações, não procuro só o está bonito ou bem executado. Gosto de, às vezes, estar aqui com amigos a refletir sobre o que pintei. Estou a fazer os anjos e demónios, porque todos nós temos um anjinho dentro de nós, um demónio dentro de nós, quando estamos sozinhos, quando estamos em sociedade.
"É preciso educar e reeducar as pessoas para irem e consumirem cultura"
Gosto muito de abordar problemáticas da sociedade. Acho que, hoje em dia, o humano, ou a humanidade global, está adormecida. E isso é realmente um tema e uma problemática que eu gosto de abordar. Acho que vamos arcar com as consequências no futuro, porque estamos a dormir. Através do trabalho e com novas criações que estou a pensar… vai ser um bocado sobre essa temática, o despertar do humano, o excesso de beleza, os cânones, o pensamento sexual, as pessoas, que está tudo ligado à imagem, sexo, ao sentimento de posse, ao conformismo. São problemáticas com as quais me identifico, e determinam o propósito de eu estar cá enquanto artista neste mundo.
Nunca pensaste em sair de Guimarães?
Sim, já. Já tive uma oportunidade para ir para Barcelona, mas, na altura, surgiu outro projeto para pintar uma série de quadros. Ia ganhar um bom dinheiro, precisava de sobreviver, e decidi continuar por Guimarães. Mas a vida continua. Acho que a cidade cada vez aceita mais os artistas e está mais educada. Embora eu ache que ainda é preciso fazer muito trabalho para mudar mentalidades e para nos libertarmos do estigma do artista. Já foi bem pior. Sou do mundo, trabalho em várias cidades. Fui a Dijon, no ano passado, representar Guimarães com outro artista francês. Tenho tido esses projetos, por isso sou do Mundo, basta surgiu o desafio e a oportunidade, que eu lá vou.
Gosto de Guimarães porquê? É uma cidade tranquila para criares e, hoje em dia, como deves imaginar, com 35 anos, estou naquela fase de mais ponderação, mais tranquilo, mas comedido, mais introspetivo. Apelo e vou à procura mais do sossego e da paz de espírito. Embora, também o barulho e o ruído são bons elementos, e cidades também mexidas, bons elementos para tu criares. Neste momento estou na minha, no meu caminho, tranquilo, com os objetivos bem traçados, e Guimarães está-me a fazer bem nesse sentido.
Sentes que Guimarães, apesar de andares por aí, é a tua casa?
Sem dúvida é o meu poiso, o meu ninho confortável. E tem rendas mais baratas.
Qual é que achas que é, neste momento, o panorama das artes em Guimarães?
É assim… está bom. O antes da Capital Europeia da Cultura, era zero. Guimarães zero a nível de panorama cultural, muito limitado. Depois veio 2012. Foi aquela chapada às pessoas. As pessoas não estavam bem habituadas ao que é que é cultura, o que é que é teatro, grandes eventos. Isto é o que eu sinto, atenção. Somos uma cidade pequena, apesar de sermos um concelho com muitas freguesias, temos um centro pequeno.
Hoje em dia está muito bom. Temos aí eventos espetaculares que são falados tanto a nível nacional como internacional. Cada vez a cidade de Guimarães é mais falada a nível cultural. Porque é que certos eventos acabam por cair? O problema de sempre. Não quero ser mal interpretado. Tens todo o tipo de eventos. Quando me perguntas cultura… cultura não é só cultura de Centro Cultura Vila Flor, Plataforma das Artes, CAAA. Cultura é tudo. Ou seja, se formos a ver no panorama geral estamos muito bem. Acho que falha uma coisa muito crassa em Guimarães, que é a forma como divulgam as coisas. Às vezes o evento realmente é de peso, mas divulgam tarde e a más horas. Às vezes isso faz-me pensar, como artista, “pronto, vamos preencher agenda, e vamos fazer as coisas, são cinco dias de evento e está bom”. Acho que é preciso entrosar mais as pessoas com outras formas, outros modelos, de comunicação. Agora, é preciso educar e reeducar as pessoas para irem e consumirem cultura, tantos nos grandes palcos, como nos pequenos palcos. Têm a mesma importância.
Sentes que ainda é preciso educar para o consumo da arte?
Sem dúvida. Para muitos, “eu até queria ter um retrato teu, queria ir à tua peça”, mas há sempre aquela eterna desculpa. As pessoas vivem intrinsecamente presas ao sentimento de desculpa que “não pude ir”. Se calhar, às vezes, os meios de comunicação não são trabalhados de forma a serem incentivadores a tu ires à cultura. Outras estratégias, mais em vídeo, aquele teaser de apresentação curto, não sei, pessoas a andarem na rua a falarem sobre os eventos… Se a cultura existe, tem que ser divulgada, e tem que ser bem divulgada.
Os artistas vimaranenses são aproveitados na cidade?
Não são aproveitados, nem têm o espírito de união que eu achava que tinham. Acho que 2020 despoletou a competitividade. Isso afasta um bocado os artistas. Por exemplo, esta cooperação, que fiz com o Nuno Machado, é bom trabalhar com outros artistas. Mas há muito essa competitividade ainda, e isso depois transcreve-se na não valorização do artista. Deve-se apoiar ainda mais os artistas, deve-se apoiar no coletivo, os artistas trabalharem juntos, partilharem ideias. Acho que é um bocado isso que está a faltar. Embora se tenha visto mais coletivos a trabalhar. Tem sido bom. É um ponto que tem que ser melhorado, como outros pontos, mas eu acho que já foi bem pior.
Acho que se deve abrir mais as portas aos artistas, poderem trabalhar, em vez de criarem obstáculos. Não estou a dizer que a nossa Câmara cria obstáculos, mas acho que poderia fazer muito mais, para bem da cultura vimaranense.
Enquanto artista, há algum apelo que gostasses de fazer aos vimaranenses a nível cultural?
Gostava de pedir a possibilidade de serem criados modelos, dentro das normas da DGS, de apresentação da cultura, desde teatro, exposições, que é para a cultura não morrer. Sinceramente, nos últimos dias, tu olhas para a nossa cidade, tudo triste, é um bocado cidade deserta. Imaginas uma sociedade sem cultura? Eu não imagino uma cidade sem cultura. Acho que devem ser trabalhados novos modelos, ou outros modelos, que permitam a cultura ser executada, para enriquecer e alegrar a alma do povo.
Arte com alma…
Não estou neste mundo para agradar a ninguém. Tu, com a tua arte, não agradas a toda a gente. Às vezes vives preso, como artista, queres agradar a toda a gente, que toda a gente vai gostar do teu tipo de obra, e não. A partir do momento, e acho que isso é um processo de maturação, dependendo do artista, mas no meu caso foi “eu vou fazer realmente o que me dá na gana”.
Tento sempre fugir a instituições que te prendem a alma, ou que te tentam direcionar que “a arte contemporânea tem que ser assim”. A contemporaneidade na arte é um estado de espírito. O meu estado de espírito é eu sentir que as coisas que queria têm alma, têm a minha alma, têm muitos bocados de mim. Quando tu pintas dás tudo, quando tu desenhas dás tudo. Encaro qualquer tipo de trabalho como se fosse uma coisa para evoluir, séria, e que quero realmente transmitir uma mensagem e não ser somente “está bonito”. Acho que um artista se constrói. Não é por tu seres habilidoso que és artista. Um artista é uma mentalidade, é um tipo de identidade, é um bom contributo social. Eu, como artista, com alma, quando digo arte com alma, é arte com verdade, é a mesma verdade do teatro. É arte com verdade. E as pessoas podem-se perguntar “e verdade? É ambígua. É a omissão da mentira?”. É a verdade no sentido lato da coisa, que tem essência, que te arrepia, que te transmite coisas boas, reações, ou más. A alma é isso. Quando pinto, quando desenho, quando crio algo, dou tudo. Encaro tudo de forma séria e isolo-me naquela criação e ‘bora lá. Estás a fazer isto para ti e depois para o mundo. Primeiro para ti.
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